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terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Cafarnaum - Caos






Tive meu primeiro contato com a diretora Nadine Labaki  através  do  seu filme delicioso Caramelo em 2008 uma mistura de drama e comédia, que me apresentou essa cineasta e atriz que vinha para ficar e marcar a sétima arte. Tempos depois, ela nos presenteou com outro excelente filme: E agora onde vamos? (que inclusive comentei em meu canal de vídeos https://www.youtube.com/watch?v=3220MDgvfKY). 
A força e o talento dessa atriz e diretora transborda na sua postura, beleza e no seu olhar, Nadine tem o dom de tocar em temas polêmicos com maestria, delicadeza e sensibilidade.
Cafarnaum, seu mais recente filme árabe libanês (2018) é um dos indicados para o Oscar como melhor filme estrangeiro. A película foi galardoada com o Prêmio Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2018, e recebeu uma ovação de 15 minutos na estreia no dia 17 de maio de 2018. Novamente a diretora toca em feridas e valores sociais, nos atingindo profundamente. Nadine aborda a pobreza, a família disfuncional e a exploração infantil, questões tão comuns para nós brasileiros, que vemos todos os dias crianças em semáforos vendendo balas ou pelas ruas mendigando.
O título Cafarnaum que quer dizer Caos, não poderia ser mais apropriado, porque o que vemos do princípio ao fim do filme é realmente um caos em todos os níveis. Me chamou particularmente a atenção essa maneira de Nadine abordar um tema tão delicado como a família sem pudor ou verniz, mas, tentando por meio da ficção tocar o real de maneira mais próxima o possível, sim porque há uma fantasia que pais e mães sempre amam, protegem e cuidam dos seus filhos. No entanto, o que vemos em Cafarnaum não é bem assim, o real da ignorância humana, da pobreza e da miséria nos mostra que ter filhos não necessariamente nos torna pais e mães, essas funções são construções simbólicas, muito além do que é dito popularmente como instinto materno, nem todos cumprirão bem essas funções. O ser humano se não for civilizado como já dizia Freud em seu texto O Mal-estar na Civilização, 1930 terá mais dificuldades em sublimar suas pulsões o tornando muito mais animal do que humano. Somos seres de linguagem e como tal, os significantes nos marcam desde que nascemos. Em um momento do filme o personagem principal Zain, um menino de doze anos fala dos significantes que o acompanharam desde de sempre, que eram  xingamentos e insultos vindos dos pais. O pai dele também costumava mal dizer a esposa. Zain, fruto de pais ignorantes, consegue com sua percepção e sensibilidade compreender o ciclo de repetição mortífera de sua família, que envolve: miséria, desamor e desamparo. 
Nós psicanalistas, sabemos que só gerar e trazer um ser humano ao mundo não consequentemente o tornará um sujeito. O filhote humano precisa do Outro e do outro para se constituir psiquicamente e para sobreviver, pois não basta alimentar e limpar um bebê, ele precisa de investimento psíquico, do olhar, da voz, do afeto e desejo também no seu desenvolvimento, posteriormente da função paterna para poder desejar e ir para o mundo. Esse processo não é automático e é uma construção ao longo dos anos.
Zain apesar de toda a exploração e abuso que sofre diariamente é um menino que ama, cuida e protege, principalmente sua irmã um ano mais nova do que ele, sendo o “pai” e “mãe” dela. O esforço dele em protegê-la nos parte o coração, apesar de ter doze anos, Zain é um menino pequeno e franzino, mas a sua força e determinação são de um homem de mais de 20 anos. Seu olhar sempre triste traduzindo toda a sua dor nos comove durante todo o filme, Zain só sorri e levemente na última cena.
Em alguns momentos Cafarnaum me lembrou a outro filme que assisti e também comentei aqui no blogue: Nojoom, 10 anos divorciada (https://freudecinema.blogspot.com/2017/05/nojoon-10-anos-divorciada.html) baseado no drama real de Nujood Ali, que em 2008, aos dez anos, era a mais jovem divorciada no mundo, a história se tornou um livro e a cineasta Khadija Al-Salami adaptou a narrativa para o cinema. Nojoom, como Zain apesar do desamparo e a miséria consegue mobilizar um país para conseguir se divorciar aos dez anos. Neste filme como no de Nadine, nos deparamos com a ignorância e a pobreza, isso irá marcar indelevelmente os destinos de Nojoom e Zain. Os discursos de ambas famílias são anacrônicos e egoístas só visam a subsistência da família através da dor, do trabalho e da exploração dos filhos. Se Nojoom mobiliza a sociedade para se divorciar, Zain a mobiliza por querer processar os pais por ter nascido. Outro valor questionado no filme, “a vida”, ouvimos todos os dias que a vida é algo sagrado, é uma dádiva, mas será que se você aos dez anos como Nojoom fosse obrigada a se casar com um homem mais velho, para a família ter onde morar, enquanto o que ela queria era brincar com sua boneca, ou Zain que trabalhava incessantemente em um armazém para sustentar a família, sendo que seu sonho era ir para a escola, defenderia tanto a vida irrestritamente, mesmo para aqueles que não têm a mínima condição emocional e material de colocar uma vida no mundo? Será que viver para o outro sobreviver é uma dádiva? Ocupar o lugar do pai e da mãe e não poder ser filho é justo?
Como disse no início desse filme, Nadine toca em questões delicadas, a fantasia de que a família pode ser a maior referência para o ser humano em termos de amor e proteção, é desmontada nessa película. Antes de sermos pais, somos meros mortais, com nossas dores, medos e limitações, quanto mais ignorantes em relação a si mesmo e ao outro, mais riscos de criar famílias como essas de Nojoon e Zain, “lares” que exploram os filhos em nome da consanguinidade, mas, não têm a dignidade de assumirem seus erros, suas responsabilidades e suas escolhas. Por mais filmes como esses, e por mais Nojoom e Zain pelo mundo, essas crianças nos mostram que talvez ainda haja esperança um dia para a humanidade.


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