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quinta-feira, 11 de maio de 2017

Nojoom, 10 anos, divorciada



Baseado no drama real de Nujood Ali, que em 2008, aos 10 anos, era a mais jovem divorciada no mundo, a história se tornou um livro e a cineasta Khadija Al-Salami adaptou a narrativa para o cinema. Sem dúvida, o filme é de suma importância, temos a obrigação de denunciar a situação dessas meninas, pois como é relatado na película, 70 mil garotas morrem por ano por causa do casamento infantil.
Apesar da direção do filme deixar um pouco a desejar, (talvez o formato de documentário fosse melhor) foi uma experiência muito impactante assistir ao drama dessa menina que se casa aos 10 anos e consegue se divorciar com a mesma idade, algo único e inédito na história do Iêmen.
O filme nos apresenta a trajetória de Nojoom desde o seu nascimento, que por sinal é interessante marcar, pois a irmã queria que seu nome fosse Nojoom (que significa estrela). No entanto, seu pai, que demonstra decepção a saber o sexo do bebê, decide por Nujood que significa escondida. Apesar essa desilusão inicial, o pai demonstra muita afeto pela filha durante a infância. Fiquei refletindo se a troca desses significantes que nomeariam a menina afetaram seu destino. Porém, depois que conhecemos a realidade das famílias que vivem nas montanhas, ou seja, pessoas analfabetas que sobrevivem somente do seus gados e do que plantam, entendemos que o Iêmen é mais um país onde as classes sociais são bem definidas e que, como sempre, os pobres são ignorantes, sem acesso a informação, machistas e preconceituosos. Portanto, as chances de Nojoom ou Nujood viver seu destino cruel eram mais reais do que distantes.
Voltemos a história de Nujood. A família tem que sair das montanhas devido a uma tragédia vivida pela irmã mais velha. Seu pai vende tudo que possuía e se muda com a família para a cidade. Na cidade, tendo dificuldade de arranjar emprego, pois analfabeto só pode trabalhar na construção civil, e por não ser mais tão jovem, também não consegue trabalho. As mulheres (o pai tem duas) e os filhos passam a pedir esmolas nas ruas. Logo o pouco que o pai de Nojoom recebeu quando vendeu o que tinha nas montanhas se esvai e a fome toma conta da família. A única solução para essa situação trágica é vender os filhos: a filha de 10 anos para um outro montanhês que quer comprar uma “mulher” para casar e um outro filho um pouco mais velho para ser escravo para um árabe na Arábia Saudita. Os filhos viram mercadoria de troca para sobrevivência da família.
Por outro lado, também vemos na cidade um Iêmen moderno, classes abastadas como a dos juizes com casas suntuosas, filhas educadas e uma realidade totalmente diferente da família de Nojoom. A desigualdade é gritante, como na maioria dos países pobres.
Não vou me deter ao que acontece com Nojoom quando se casa, porque qualquer um pode imaginar a crueldade que essa menina de 10 anos, que inclusive ao se casar leva a boneca que comprou com o dinheiro da aliança, sofre. Desde a primeira noite sendo estuprada e depois dias e dias sendo forçada a ter sexo com um homem, sendo escrava da família e sem poder ter contato com ninguém de sua família. Cruel é o único significante que chega perto para nomear o destino dessa menina e de tantas que vivem no Iêmen. Seria muito mais simples culpar o pai de Nojoom e o homem que a comprou por suas atitudes perversas. Claro que ambos são responsáveis por cometerem esse crime. Mas vejam bem, isso só é crime aos nossos olhos, mas é importante frisar que parte de toda a sociedade do país é culpada também por essa crueldade. Primeiro, permitindo por lei que meninas a partir de 8 anos se casem; essa lei permite que maridos como o de Nojoom, que é um outro ignorante e analfabeto como seu pai, utilize-se de uma lei absurda  para  apoiar seu desejo de comprar uma “mulher”. Que valores são esses? Me lembrei muito de Freud e seu belíssimo texto O Mal-estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, 1930), no qual ele comenta a questão da cultura como barra para os instintos: quanto mais um homem não tem acesso a valores civilizatórios, mais suscetível aos instintos ele será. O que vemos é todo um ciclo vicioso de ignorância, miséria e desigualdade social que alimenta tudo que há de pior nos seres humanos, sobrando como opção sempre algum tipo de escravização; no caso do filme, a mais antiga de todas, qual seja, a que coloca os sujeitos do sexo feminino como objeto de desejo ou gozo do outro.
Nojoom com sua história nos mostra além da crueldade imensa de um homem possuir sexualmente uma criança, a ponto de muitas morrerem de hemorragia, existe toda uma realidade sócio-econômica que infelizmente alimenta, inclusive legalmente, esse absurdo. Afinal, que homem com o mínimo de bom senso e informação se casaria com uma criança? Não é só ele que não vê essa menina como criança, mas, por todos que vivem sem direito à educação, à saúde, a trabalhos justos, que são esquecidos, excluídos e ignorados por aqueles que governam e legislam naquele país.

Saí do filme pensando: será que se aqui no Brasil também não fosse proibido o casamento infantil, não teríamos uma situação semelhante ao do Iêmen? Pelo menos o que tange a semelhança de pobreza e ignorância, os dois países são bem parecidos.

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