Uma noite de 12 anos poderia ser mais um
filme dos tantos que já assistimos que trata de tortura e sofrimento durante a
ditadura na América Latina, no entanto, devido a sensibilidade do diretor Alvaro
Brechner a película apesar do tema duro e altamente dramático nos faz sentir na
alma, um misto de emoções que se confundem durante o filme: tristeza e
melancolia de forma muito real, mas, sem muitas cenas de tortura física, porém,
com muitas cenas de tortura psicológica, esse foi um grande diferencial nesse filme, sentimos muito a dor da alma. Vemos que podemos dilacerar um homem com o isolamento, escuridão, abandono e
silêncio. Alvaro também apresenta cuidados técnicos e ritmos muito peculiares ao
filme. Primeiro, vamos à parte técnica das filmagens que são espetaculares, as
cores sempre cinza e marrom, os planos detalhes das mãos sujas, olhos melancólicos
e os closers dos rostos dos atores são perfeitos e dão profundidade as cenas, sendo assim, os poucos
momentos que vivemos as lembranças felizes dos presos são verdadeiros presentes
imagéticos, pois, os planos são gerais, com muita luz, closers muito bem
filmados deles felizes e tudo acompanhado
perfeitamente com a trilha sonora, tornando um casamento técnico perfeito entre
som e imagem. Apesar do filme iniciar com uma música anempática, pois a música era alegre e animada acompanhando a prisão dos três, talvez a intenção fosse essa mesma, ou seja, mostrar a ironia e satisfação dos militares em uma situação trágica. Já os sons metadiegéticos na representação das alucinações auditivas de Pepe são perfeitos para entendermos como funciona uma psicose. E por fim, a cena, mais para o final do filme, muito triste por sinal, em
que a cantora canta a linda música que termina com a palavra: companheiro, é totalmente empática e de
arrepiar...
Agora vamos ao
roteiro, o filme se inicia em setembro de 1973 no Uruguai, em que, Mauricio
Rosencof (Chino Darín), José Mujica (Antonio de la Torre) e Eleuterio Fernández
Huidobro (Alfonso Tort) fazem parte do grupo dos Tupamaros que lutam contra a
ditadura militar. Eles são presos em ações distintas e com mais outros nove
companheiros, encarcerados e não podem nem sequer falar uns com os outros.
Acompanhamos ao longo do filme esses três homens serem tratados pior do que
animais, ( modo de falar, para enfatizar a crueldade que eles passavam, porque eu
não consigo outro termo de comparação, apesar de que nenhum animal deveria ter um
tratamento desumano, é claro) porque eles são presos em prisões sem camas, sem
nenhum tipo de claridade e sem privadas, precisam se deslocar com os guardas e
com correntes para as privadas coletivas. Os maus tratos são tantos, como
dormir com os ratos, passar fome, passar frio, não ter acesso a luz, higiene, que temos a
sensação que esses homens se tornarão animais irracionais, ou que sucumbirão se
suicidando, que eram os objetivos dos militares, enlouquecê-los ou os fazerem
desistir de viver. Apesar de Mujica enlouquecer, ele não sucumbe e não desiste
de viver. É duro ver tanto sofrimento e por anos. Várias vezes me lembrei de
outro preso Nelson Mandela um homem de 1,90 de altura que ficou 27 anos preso em
uma pequena cela que também foi presidente e ganhou o prêmio Nobel da Paz. Como
os presos não podiam falar uns com os outros, eles começam a se comunicar através
de toques na parede, cada toque representa uma letra até formar uma palavra e frases. A capacidade do homem de simbolizar é extraordinária e mesmo num quase
total impedimento comunicacional, eles “falam”. É tão bonito quando a filha de
Eleuterio vai visitá-lo e ele “fala” com os toques para Maurício que não sabe o
que falar para a filha, e Maurício sugere, conte uma estória e Eleuterio
responde, mas não sei nenhuma, e o amigo conta uma estória com toques na parede para o
amigo repassar à filha. Esses homens tão solitários, abandonados e mal- tratados
apesar de tanto sofrimento físico e tortura psicológica nunca deixam sua
dignidade e seu lado humano morrerem. Durante os doze anos, eles são transferidos
para inúmeras prisões, cada uma pior do que a outra, só a última que parece uma
cela, pois as anteriores pareciam as masmorras da Idade Média. O filme nos
brinda diversas vezes com cenas antológicas, como a da mãe de Mujica esperando
por horas na chuva para tentar vê-lo, ou quando consegue finalmente visitá-lo e
percebe que seu filho está descompensado e falando coisas sem nexo, a força com
que essa mãe chama Pepe para realidade e o convoca a não desistir é
emocionante. Outra cena é a da médica que avalia a psicose de Pepe, tão
profunda e verdadeira ela conta rapidamente sua estória para ele, e Mujica fala
mais ou menos isso: o que me resta? Deus não faria isso e estou louco. E a médica
muito sabiamente fala: faça só o que for possível. E no fundo ela também está
falando, não desista.
Em tempos em que
estamos vivendo uma eleição no qual, um candidato apoia a tortura, homenageia
torturador, assistir a um filme que mostra o que a ditadura militar uruguaia
fez com aqueles homens e usando mesmos significantes que são utilizados até
hoje: subversivos, comunistas, causa uma espécie de horror e profunda tristeza.
Como alguém que tem a mínima ideia do que seja a tortura, pode apoiar, zombar
ou incentivar isso para outro ser humano?
Freud nos apontou em
um de seus célebres textos, que essa agressividade existente no ser humano é
inerente a raça humana, (Mal Estar da Civilização -1930), mas sabemos também,
que através do simbólico e da sublimação podemos amenizar essa agressividade e
apaziguar a pulsão de morte em vez de projetá-la no outro. Por que essa busca infindável de se fazer
existir o Grande Outro, que imaginariamente se manifesta na figura do líder político,
do Pai de todos e do salvador, esse que pode solucionar tudo sozinho? Ninguém pode solucionar tudo, nem pode controlar
o outro e para quê? Todos temos que aprender a lidar com as nossas próprias
escolhas e as consequências delas. Quem precisa de pai é criança e não adulto. Nem
os presos no filme puderam ser controlados totalmente, pois, a autonomia interna
que cada um possuía era maior do que qualquer controle. Quando acabei de
assistir ao filme pude entender quem é Pepe Mujica, me deu um orgulho danado de
existirem seres como ele no mundo.
Somos seres
desamparados, sem garantia de nada e só com uma certeza, todos iremos morrer,
aceitar a castração simbólica é aceitar que somos humanos.
O filme mostra que,
justamente essa capacidade de simbolizar, de imaginar, de criar alternativas,
seja se comunicar com toques na parede, seja apreciar os minutos de ar puro,
seja valorizar a luz do sol ou lembrar das pessoas que amamos é que faz valer a
pena viver e não desistir como os três do filme.
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