O novo filme da diretora Lúcia Murat é
um misto de drama e suspense que nos deixa angustiados desde os primeiros
minutos da trama até o fim. O filme foi um dos vencedores da
19ª edição do Festival do Rio de 2017 [...] Exibido na Mostra Competitiva da
Première Brasil, “Praça Paris” arrecadou o prémio de Melhor Direção de Ficção,
para Lúcia Murat e o prémio Redentor de Melhor Atriz, atribuído a Grace Passô,
categoria para a qual Joana de Verona também foi nomeada.”[1]
Murat tem o talento de nos levar ao complexo
mundo da marginalidade, pobreza e desamparo sem cair no exagero ou na violência
gratuita, sim, porque esse filme poderia retratar na tela muita violência,
mortes e cenas esdrúxulas, mas aí que
está a sua sapiência como diretora e cineasta, a violência permeia toda a
película, mas, nas sutilezas, nas palavras, nos significantes, nos closes-up bem
enquadrados das personagens e sobretudo, na atuação maravilhosa da atriz angolana
Grace Passô que representa a paciente Glória.
O filme aborda o drama de Glória,
uma mulher pobre, negra, residente na favela, que trabalha na universidade
-UERJ como ascensorista e vai fazer um tratamento terapêutico com uma psicóloga
portuguesa, Camila mestranda que está pesquisando sobre a violência no Rio de
Janeiro. Coincidentemente, a terapeuta teve uma avó que viveu no Brasil, e que
muitos a acham parecida fisicamente com ela, no fim do filme, tenho dúvidas se
era só fisicamente, mas, enfim, podem ser só minhas fantasias.
No decorrer do tratamento Glória
vai tecendo sua novela familiar catastrófica à Camila; abandonada pela mãe quando
criança, ela fica com o pai e o irmão menor, o pai a estupra e a mantém como sua amante. A
terapeuta vai ficando profundamente envolvida não só profissionalmente, como
ela afirma várias vezes, mas também pessoalmente. A estória de Glória é muito
dura, crua e real, através dela, Camila tem acesso ao submundo das favelas, “as
leis” sem lei dos donos do morro e ao desamparo daquela mulher que está a mercê
do ódio, da desigualdade social e da supremacia masculina. A diretora expõe
muito bem qual é o lugar da mulher, pobre e favelada no mundo dos homens sejam
eles pobres ou ricos, ela é sempre explorada e tende a ser objeto do outro. O
mais interessante que, apesar da situação profundamente excruciante de Glória,
ela em nenhum momento, se faz de vítima, transparece sua fragilidade e sua dor,
sem dúvida a paciente teve que construir defesas muito potentes para lidar com
toda a violência e as perdas que a vida lhe impôs. Glória é uma mulher muito
lúcida em relação a sua estória e aos seus dramas, mas, o contato com Camila a
colocará em contato com sua “prisão psíquica”. Ao contrário, Camila a
terapeuta, apesar dos conhecimentos teóricos e vai se fragilizando e perdendo o
controle no decorrer do filme. As palavras e as angústias de Glória são
sentidas por Camila na transferência de uma forma avassaladora. A terapeuta
entra em contato também com seu desamparo, está em um país que não é o seu, no
qual o perigo está a poucos metros de distância, a violência sai da pesquisa
teórica para ser entendida através de sua paciente, de forma empírica, pungente
e irredutível.
Murat dá até uma passeada na
religião e mostra o empenho de um pastor em ” adestrar suas ovelhas” na
favela. Deus é uma das possibilidades de redenção e salvação, nem que seja para
aliviar as dores dos mais fracos e submetidos as leis dos homens do tráfico e
das armas.
Apesar de todo o muro defensivo
de Glória, pois, temos a sensação que parece até que ela está narrando a
estória de outra pessoa, tamanha a sua frieza (talvez seja seu recurso falar
sob um certo ponto de distanciamento, a fim de preservar sua sanidade mental),
a terapia irá causar desejos em Glória e ela tentará sustenta-los. No entanto,
devido a escassez de simbólico do meio em que foi submetida e de seu laço com o
irmão, ela irá passar ao ato, a única saída vislumbrada por uma mulher que se
vê sempre subjugada ao desejo do outro, “ou elimino quem está no meu caminho ou
meu desejo será eliminado”. No filme fica bem claro, que essa mulher não pode
desejar, nunca pôde, e pelo andar da carruagem, talvez nunca possa, pois, os
significantes que a marcaram são indeléveis e serão repetidos onde quer que ela
esteja. Apesar da impassibilidade quase irritante de Glória é perceptível pelo
seu olhar, pelo seu jeito de falar, que há um esforço hercúleo, para se poder
existir, como ser humano e como mulher, na terapia ela mostrará o receio de ser
abandonada pela terapeuta, a transferência se estabelece de forma plena e
Glória tenta reescrever seu destino, mesmo que na repetição.
Por outro lado, Camila também
reescreverá o seu, não necessariamente através de sua dissertação de mestrado.
A passagem de sua avó pelo Brasil, também carrega um enigma que Camila tentará
de alguma forma elaborar, há algo inominável na estória dessa avó, transmitido
pela família, e quem sabe essa narrativa foi transmitida consciente e inconsciente a ela, pois alguém precisaria dar sentido a esta incógnita familiar. No final do filme veremos dois destinos,
nenhum deles resolvido, como é a vida de todos nós, sempre em construção.
[1]
Disponível em: http://filmpt.com/praca-paris-filme-protagonizado-por-joana-de-verona-premiado-no-festival-do-rio/
Acesso: 29/04/2017.