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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Praça Paris






O novo filme da diretora Lúcia Murat é um misto de drama e suspense que nos deixa angustiados desde os primeiros minutos da trama até o fim. O filme foi um dos vencedores da 19ª edição do Festival do Rio de 2017 [...] Exibido na Mostra Competitiva da Première Brasil, “Praça Paris” arrecadou o prémio de Melhor Direção de Ficção, para Lúcia Murat e o prémio Redentor de Melhor Atriz, atribuído a Grace Passô, categoria para a qual Joana de Verona também foi nomeada.”[1]
 Murat tem o talento de nos levar ao complexo mundo da marginalidade, pobreza e desamparo sem cair no exagero ou na violência gratuita, sim, porque esse filme poderia retratar na tela muita violência, mortes e cenas  esdrúxulas, mas aí que está a sua sapiência como diretora e cineasta, a violência permeia toda a película, mas, nas sutilezas, nas palavras, nos significantes, nos closes-up bem enquadrados das personagens e sobretudo, na atuação maravilhosa da atriz angolana Grace Passô que representa a paciente Glória.
O filme aborda o drama de Glória, uma mulher pobre, negra, residente na favela, que trabalha na universidade -UERJ como ascensorista e vai fazer um tratamento terapêutico com uma psicóloga portuguesa, Camila mestranda que está pesquisando sobre a violência no Rio de Janeiro. Coincidentemente, a terapeuta teve uma avó que viveu no Brasil, e que muitos a acham parecida fisicamente com ela, no fim do filme, tenho dúvidas se era só fisicamente, mas, enfim, podem ser só minhas fantasias.
No decorrer do tratamento Glória vai tecendo sua novela familiar catastrófica à Camila; abandonada pela mãe quando criança, ela fica com o pai e o irmão menor, o pai a estupra e a mantém como sua amante. A terapeuta vai ficando profundamente envolvida não só profissionalmente, como ela afirma várias vezes, mas também pessoalmente. A estória de Glória é muito dura, crua e real, através dela, Camila tem acesso ao submundo das favelas, “as leis” sem lei dos donos do morro e ao desamparo daquela mulher que está a mercê do ódio, da desigualdade social e da supremacia masculina. A diretora expõe muito bem qual é o lugar da mulher, pobre e favelada no mundo dos homens sejam eles pobres ou ricos, ela é sempre explorada e tende a ser objeto do outro. O mais interessante que, apesar da situação profundamente excruciante de Glória, ela em nenhum momento, se faz de vítima, transparece sua fragilidade e sua dor, sem dúvida a paciente teve que construir defesas muito potentes para lidar com toda a violência e as perdas que a vida lhe impôs. Glória é uma mulher muito lúcida em relação a sua estória e aos seus dramas, mas, o contato com Camila a colocará em contato com sua “prisão psíquica”. Ao contrário, Camila a terapeuta, apesar dos conhecimentos teóricos e vai se fragilizando e perdendo o controle no decorrer do filme. As palavras e as angústias de Glória são sentidas por Camila na transferência de uma forma avassaladora. A terapeuta entra em contato também com seu desamparo, está em um país que não é o seu, no qual o perigo está a poucos metros de distância, a violência sai da pesquisa teórica para ser entendida através de sua paciente, de forma empírica, pungente e irredutível.
Murat dá até uma passeada na religião e mostra o empenho de um pastor em ” adestrar suas ovelhas” na favela. Deus é uma das possibilidades de redenção e salvação, nem que seja para aliviar as dores dos mais fracos e submetidos as leis dos homens do tráfico e das armas.
Apesar de todo o muro defensivo de Glória, pois, temos a sensação que parece até que ela está narrando a estória de outra pessoa, tamanha a sua frieza (talvez seja seu recurso falar sob um certo ponto de distanciamento, a fim de preservar sua sanidade mental), a terapia irá causar desejos em Glória e ela tentará sustenta-los. No entanto, devido a escassez de simbólico do meio em que foi submetida e de seu laço com o irmão, ela irá passar ao ato, a única saída vislumbrada por uma mulher que se vê sempre subjugada ao desejo do outro, “ou elimino quem está no meu caminho ou meu desejo será eliminado”. No filme fica bem claro, que essa mulher não pode desejar, nunca pôde, e pelo andar da carruagem, talvez nunca possa, pois, os significantes que a marcaram são indeléveis e serão repetidos onde quer que ela esteja. Apesar da impassibilidade quase irritante de Glória é perceptível pelo seu olhar, pelo seu jeito de falar, que há um esforço hercúleo, para se poder existir, como ser humano e como mulher, na terapia ela mostrará o receio de ser abandonada pela terapeuta, a transferência se estabelece de forma plena e Glória tenta reescrever seu destino, mesmo que na repetição.
Por outro lado, Camila também reescreverá o seu, não necessariamente através de sua dissertação de mestrado. A passagem de sua avó pelo Brasil, também carrega um enigma que Camila tentará de alguma forma elaborar, há algo inominável na estória dessa avó, transmitido pela família, e quem sabe essa narrativa foi transmitida consciente e inconsciente a ela, pois alguém precisaria dar sentido a esta incógnita familiar. No final do filme veremos dois destinos, nenhum deles resolvido, como é a vida de todos nós, sempre em construção.

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