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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Manchester À Beira- Mar






Um dos filmes indicados ao Oscar desse ano, Manchester À Beira-Mar, nos surpreende com seu roteiro simples, porém intenso e forte. Casey Affleck que representa o personagem principal, ganhou o Globo de Ouro como melhor ator merecidamente e concorre ao Oscar na mesma categoria. Sem dúvida, sua atuação é impecável. Já o cineasta Kenneth Lonergan, com sua sensibilidade, conseguiu fazer de um filme denso e triste, em alguns momentos até engraçado e leve, além de retratar a morte com muita sabedoria e senso de praticidade, afinal, morrer causa vários desdobramentos e práticos.
Vamos ao filme... Lee Chandler, um dos personagens principais é um homem solitário, triste e refratário às emoções, a não ser, quando explode através de brigas e socos em bares e por motivos banais. Parece que toda aquela contenção no belo olhar de Lee e a economia de palavras, vazam por meio da agressividade e da necessidade de sentir dor, talvez a necessidade de sentir alguma coisa, mesmo que seja destrutiva, para testar que continua vivo. A pulsão de morte acha sempre um meio para se manifestar além do seu celibato e embebedar-se ele extravasa nos socos, tudo que reprime internamente... O cenário também não colabora muito, para amenizar esse tom melancólico do personagem. Lee mora em Boston, é zelador de quatro prédios, mora num quarto no subsolo e a estação no início do filme é o inverno. Tudo é branco de neve,  camadas densas de gelo se acumulam nas imediações dos prédios, o frio é cortante como a vida sem graça e monótona de Lee.
A repetição de sua existência é interrompida, quando Lee recebe a notícia que seu irmão mais velho Joe está internado em estado grave no hospital. Lee tem que deixar sua “prisão existencial” para entrar em contato com sua família, seu irmão e sobrinho são seus únicos elos com a vida e também com o passado. Seu irmão falece e seu sobrinho Patrick fica sob seus cuidados, inclusive seu irmão deixa um testamento, em que Lee seria o tutor de seu filho até os dezoito anos, Patrick tem dezesseis quando o pai morre.
Num flash rápido de lembrança vemos Lee no passado com a esposa e os filhos. Parecia um homem de vida simples das pequenas cidades dos EUA, sem muitas oportunidades, cultura ou diversão, que gostava da família, bebia para se distrair e não tinha grande sonhos, mas isso já era o suficiente.
Nós espectadores, ficamos a especular o que poderia ter acontecido para que Lee estivesse no presente sozinho e tão amargo? Pensei em uma separação é claro e com meus botões, já fiquei fantasiando, “seja o que tenha acontecido foi muito doloroso, a ponto de deixar esse homem tão machucado e infeliz.” Mas, podem esperar que saberemos o que o tornou assim e realmente, foi muito duro o que aconteceu com Lee no passado. 
Continuando… Lee fica muito angustiado com a incumbência legal em relação a seu sobrinho. Patrick que vive afastado da mãe fisicamente, tinha retomado os contatos com ela via e-mail escondido do pai. Ele até visa a possibilidade de ir morar com a mãe, que no passado sofria de alcoolismo e se separou dele e do pai.
Vemos duas pessoas desamparadas, mas, atuando de formas diferentes, uma, porque não tem estrutura emocional organizada, e ainda vive preso a sua dor, apesar de ser presente e solícito, Lee e outro Patrick, que, mesmo aos dezesseis anos, se mostra um adolescente centrado, popular, alegre e cheio de vida. No entanto a possibilidade de ter que ir morar em Boston com Lee, angustia muito Patrick, afinal, toda sua vida está na cidade em que mora. Patrick inclusive questiona o tio: “o que você tem em Boston?
Esse dilema irá nos acompanhar por todo o filme, e até o final não saberemos como, onde e com quem Patrick irá ficar.
Interessante que a medida em que assistimos ao filme temos a esperança que no final tudo se organize, todos fiquem bem e aquela velha redenção e capacidade de resiliência se presentifique e possamos pensar, todos podem mudar, basta ter amor, apoio e etc. Realmente tudo até o fim do filme se organizará, no entanto, não será talvez, da forma que gostaríamos ou esperávamos, e isso é uma das características do filme que mais gostei, ou seja mostrar também um real que por vezes é irredutível. Apesar de dedicado e amoroso Lee é um sujeito destruído emocionalmente, carrega uma culpa monstruosa e não teve recursos psíquicos para tentar elaborar sua tragédia pessoal e nomear seu trauma, Lee nunca fez um luto de sua dor, portanto vive mergulhado e aprisionado dentro dela. Sabemos que para psicanálise, uma representação traumática é recalcada na neurose, mas, esta sempre retornará através dos sintomas, sonhos, atos falhos. O trauma precisa ser elaborado por mais cruel e devastador que tenha sido, é preciso falar dele, nomear as emoções, só assim, o sujeito abrirá espaço novamente para sonhar, desejar e viver.  Nesse filme em que a neve gela a cidade e o coração de Lee, a bela lição que Lee, Patrick, a mãe de Patrick, e Randy (ex esposa de Lee) nos dão, é que apesar de amarmos alguém, muitas vezes temos limites intransponíveis, que precisamos respeitar, aceitar e fazer não o que seria ideal, mas o que é possível para cada um.





segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O apartamento, mais um filme genial de Asghar Fahadi







O que tem em comum os filmes: Procurando Ely (2009), Urso de Prata Berlim; Oscar de melhor filme estrangeiro (2012), o 1o para um filme iraniano; O passado (2013) e o mais recente, O apartamento (2015) Cannes melhor ator e melhor roteiro? Todos foram dirigidos pelo diretor Asghar Farhadi. Asghar tem um tom peculiar de criar roteiros e dirigi-los, de forma a nos provocar um misto de angústia, ansiedade e por fim reflexões. Ele nos leva a percorrer os universos enigmáticos de seus personagens, e participar com eles, seus momentos de dúvidas, ambivalência e julgamentos morais.
Os filmes de Asghar sempre abordam conflitos humanos, por isso são tão reais e também nos provocam tantas sensações e sentimentos, afinal, sabemos que nós humanos, frequentemente, somos vítimas dessas desavenças com o outro. Quando assisti Procurando Ely, seu primeiro filme, fiquei profundamente tocada com o ritmo da trama e como o diretor, conseguia nos apreender de forma tão contundente e avassaladora, isso mesmo, os filmes são avassaladores, a medida em que vamos assistindo, somos tomados pelo pensamento: “Aonde isso vai dar’? E, longe de vislumbrarmos uma solução, mais confusos e angustiados ficamos. Isso me remete as situações que vivemos em nossas vidas ou as que escutamos em nossas clínicas, as relações são verdadeiros “quebra-cabeças”, que na maioria das vezes, as peças não se encaixam. Essa “fórmula” de transmitir na tela, conflitos tão humanos, reais e perturbadores, se repete em todos os filmes de Asghar, por isso também, os tornam tão especiais e geniais, principalmente, para os cinéfilos que gostam de um bom filme de arte, regado com um bom roteiro e uma ótima direção.
O apartamento, não poderia fugir a tal “fórmula”, um desmoronamento em um apartamento, leva Emad e Rana a abandonarem sua casa e se mudarem para um outro apartamento que um colega da companhia de teatro em que o casal atua, aluga para eles.
Logo no início, já começa o primeiro conflito, a antiga moradora, deixa um dos quartos trancados com seus pertences, impedido que os novos locatários possam utilizar esse cômodo. No entanto, esse seria o mais simples dos problemas, comparado do que estaria por vir.
Aos poucos, vamos conhecendo também um pouco da vida da ex-moradora do apartamento, através dos vizinhos, e pelo que eles descrevem, ela era uma garota de programa. Interessante que, em nenhum momento isso é falado claramente, se utiliza do eufemismo como promíscua para nomear a conduta moral dessa moradora. Fiquei até pensando depois, se esses termos ou prostituta são permitidos serem ditos por eles. Aparentemente, essa conduta moral da ex-moradora não afetaria a vida dos atuais moradores Emad e Rana, se não fosse um grave incidente que afetará profundamente a harmonia do casal. A partir disso, vemos um “desmoronamento”, físico e emocional entre os dois.
Emad, um professor culto, ator de teatro e com ideias progressistas, parodoxalmente, se mostra devido a esse incidente, um homem machista, rancoroso e vingativo. Emad não consegue conversar com sua esposa, sobre seus sentimentos, sua angústia ou sua vergonha. Nada disso é simbolizado e sim atuado. Rana por sua vez, também fala pouco sobre o que sente, a não ser, que sente medo. Esse silêncio mortífero dá margem a muitas fantasias e o sentimento de honra de Emad, se torna a coisa mais importante para ele. Asghar toca em algo profundamente narcísico para um homem, certamente, vários expectadores homens se identificarão com Emad. Outro ponto em que ele toca muito bem, é na hipocrisia da sociedade iraniana, como que em uma sociedade tão religiosa e repressora, existem garotas de programa e clientes? E muitos destes clientes como em qualquer lugar do mundo, são casados, tem esposas e família. Por debaixo de tanta moralidade, vamos conhecendo uma grande imoralidade.
Asghar, tem esse dom, ou seja, o de fazer com que seus personagens sejam humanos e reais, que mostrem suas sombras, que mentem, que sentem ódio, mágoa e ressentimento.
Seus personagens são o paradigma de neuróticos que, quando confrontados com os dilemas e conflitos da vida, deixam aflorar seus sintomas e demostram como é difícil poder olhar de frente para as perdas, as dores e as decepções. Então, vemos a sombra emergir através do sintoma de cada um. Emad, não poderia ser diferente, apesar de aparentar ser um homem que pensa além da cultura que vive, repressora e que censura seus textos e livros, no momento em que algo arranha um de sues valores vitais, o de macho, todo esse verniz cultural cai por terra. Emad não vira um “troglodita” é claro, mas, sua agressividade vaza, nas palavras, nos olhos e por fim nas mãos.  A fenda entre Emad e Rana é grande e só nos momentos finais do filme, vamos ver realmente, que um incidente provocado pelo outro, pode abrir uma distância quase intransponível entre os dois.
Os filmes desse diretor e roteirista brilhante, nos leva a repensar, como as palavras, os sentimentos e por fim, os atos, podem trilhar toda a diferença nas relações. O não dito, o não simbolizado, as identificações imaginárias, a falta de representações que possam nomear tantas emoções e fantasias mortíferas, podem levar a situações limites, como, as que vivenciamos em seus filmes.
Para finalizar, parafraseio Jacques-Alain Miller:
   "O amor é um labirinto de mal-entendidos onde a saída não existe."





sábado, 14 de janeiro de 2017

Eu, Daniel Blake








Adicione um tema real, atual e oportuno; um roteiro coeso e uma direção primorosa, esse é o resultado do novo filme dirigido por Ken Loach, e escrito por Paul Laverty, que ganhou a Palma de Ouro, prêmio como melhor filme no último Festival de Cannes, 2016.
O que leva um filme melancólico, triste e extremamente real ser tão bom? Penso que a capacidade do diretor em transmitir tão bem a realidade de pessoas comuns como nós. Daniel Blake poderia ser cada um de nós, poderia ser um amigo nosso, nosso irmão, nosso parente, ou nosso vizinho, de tão familiar que é a estória dele.
Um homem trabalhador, esforçado, sem qualificação, muito simples, não tem filhos, parentes, esposa e que vive de seu salário. Repentinamente Daniel é acometido de uma doença cardíaca que o impede de trabalhar. Essa é a estória central desse filme genial, que nos envolve do início ao fim, sem melodramas ou clichês, o filme é  um bom exemplo de que para se fazer cinema de qualidade, é preciso ter mais massa cinzenta do que muitos dólares.
Recentemente Loach esteve no Brasil e numa entrevista disse que o Estado vende a ilusão que somos ricos. Eu corrigiria essa afirmação, penso que o Estado vende a ideia que somos amparados pelo nosso trabalho e pelo tempo de vida que investimos nele, afinal, temos “direito” a um auxílio quando necessitamos, já que, pagamos impostos, e trabalhamos anos a fio. É justamente essa falsa ideia de amparo que cai para Daniel durante o filme. Ele é um homem que não é mais jovem, sem saúde, se confronta com uma burocracia asfixiante, uma cobrança de conhecimento digital e um jogo perverso do governo para adiar seus direitos ao auxílio trabalhador, embora sua médica afirme que ele não esteja pronto para voltar ao trabalho, o governo afirma o contrário.
Aos poucos, vamos entrando nesse mundo real, duro e injusto em que vive Daniel e também todos nós vivemos, por isso afirmei acima, Daniel poderia ser qualquer um de nós. O que temos além de um trabalho para sobrevivermos? E quando não somos mais produtivos o que viramos? Um vagabundo, um preguiçoso, um sem teto, um número de inscrição? Daniel irá questionar todos esses significantes, além, do mais importante, a dignidade. A medida em que o sujeito, não tem um lugar econômico e social no mundo, ele perde sua dignidade. Vamos perceber isso em outros personagens do filme, como a amiga, mãe solteira e desempregada que ele apoia.  A dignidade de Kate vai sendo minada aos poucos, devido a questão da sobrevivência dela e de seus filhos. A cena  em que ela recebe a cesta básica, e não consegue se controlar abrindo uma lata de molho e comendo escondido porque estava quase desmaiando de fome ou o furto de absorventes, que não eram doados, é de cortar o coração. Comer, morar, ter higiene, são direitos básicos, sem isso o que o ser humano se torna? Um indigente, um nada ou um simples número como Daniel irá desabafar em sua carta.
O filme é  um grande alerta ao mundo em que vivemos, no qual, devido ao neoliberalismo, que inclusive, se instala a todo vapor em nosso país, não respeita e não se importa com direitos e bem- estar do trabalhador. Não é isso que começamos a ver com as novas leis trabalhistas que o governo ilegítimo de Temer tentar impôr? Doze horas de trabalho, aposentadoria com 50 anos de trabalho, negociações salariais e flexibilidade de carga horária com empregadores. Como alguém irá trabalhar 50 anos para se aposentar? E se o trabalhador for acometido com uma doença grave como Daniel Blake? Como irá sobreviver com uma percentagem mínima de sua aposentadoria? Como depois de velhos, alguns,  doentes, poderão complementar sua renda? No Brasil já vemos Daniels Blake, sentados nos INSS, e recentemente vimos aposentados do Rio de Janeiro, passando dificuldades porque não recebem seus salários. Li outro dia, num post do Facebook, um professor debatendo com um aluno que afirmava que o capitalismo e o socialismo nasceram na mesma época, pós revolução industrial, no entanto, o socialismo segundo o aluno, tinha fracassado. O professor respondeu prontamente: mas se não fosse o socialismo, você trabalharia quinze horas por dia, foi o socialismo que lutou e conquistou para os trabalhadores a redução na jornada de trabalho.

Freud, com sua afirmação ao desamparo estrutural do ser humano, nos alertou para algo que sempre teremos que conviver. O ser humano é frágil, criamos estratégias, fantasias, utopias e ideais para lidar com essa nossa condição, porém, tudo isso cai por terra, quando nos deparamos com o real do corpo e da sobrevivência, não há nada que dê conta da dor física, psíquica, da fome, ou do medo, nenhuma promessa ou ilusão. Precisamos de algo concreto também para amenizar nosso mal-estar físico e mental.
A Revolução Industrial ficou para trás, os trabalhadores não são mais escravos. Será? Ou vivemos o novo modelo de escravidão na contemporaneidade, travestido no neoliberalismo, no qual o salve se quem puder é o ditado marcante para os sujeitos? Nesse mundo cada vez mais capitalista, mais desigual, onde afetos verdadeiros como o de Daniel por sua amiga Kate e seus filhos é algo cada vez mais raro e a banalização da miséria do outro, da violência e da morte se tornam cada vez mais presentes, constatamos, infelizmente, que o filme: Eu, Daniel Blake, longe de ser uma ficção é um alerta para um futuro próximo que abocanhará a todos nós.