Dor
e Glória, as perdas e glórias de um sujeito
“Este é o meu projeto mais pessoal”, falou Almodóvar quando filmava seu
mais recente filme Dor e Glória;
depois de assisti-lo, percebemos o quanto essa afirmação é verdadeira. A película
nos mostra tom e movimentos completamente diferentes dos outros filmes de Almodóvar:
se em vários filmes vimos um sarcasmo, a comédia e até o caricato, neste, a
melancolia nos acompanha do início até o fim do filme.
Interessante que ao assistir ao filme, lembrei-me muito do texto de
Freud “Luto e Melancolia”, de 1914; nesse texto Freud faz uma analogia entre o
luto e a melancolia e expõe as diferenças entre um e outro, em ambos a perda de
desejo, a tristeza e o desinvestimento nos objetos estão presentes. Embora
esses dois estados apresentarem semelhanças sintomáticas, no luto, ao seu
tempo, o sujeito conseguirá simbolizar sua dor, sua perda e retomar sua vida,
ao contrário do melancólico que tem um processo muito mais complexo, por não
ter recursos psíquicos suficientes para fazer essa transição. Por que quis
apontar essa diferença? Porque ao longo do filme acompanhamos o personagem Salvador
Mallo, (representado magnificamente por António Banderas, por cuja atuação
ganhou o prêmio de Melhor Ator em Cannes 2019), um diretor de cinema que vive
dores físicas intensas no corpo e uma depressão aguda, em meio a uma crise
criativa. Salvador também nos transmite uma melancolia perturbadora durante
toda a película. Apesar do movimento lento e profundo do filme, ficamos
apreendidos, pois, entre as dores e o olhar triste de Salvador, presenciamos
também suas lembranças: da infância, de um grande amor na juventude, de sua mãe
e da manifestação de seu primeiro desejo sexual, que nos presenteia com uma das
cenas mais belas do filme.
Quis citar o texto de
Freud porque, nesse filme, podemos ver justamente a diferença entre o neurótico
e o melancólico em relação ao luto: se Salvador apresenta inicialmente um
perfil sintomático que não é definido, uma vez que não sabemos se ele irá
atravessar esses momentos tão sombrios, no final poderemos constatar através de suas lembranças, do reencontro com Federico
e com sua retomada à vida, que ele não é um melancólico. Essa é a grande
diferença que Freud nos mostrou – o neurótico consegue com o tempo fazer o luto
e voltar a investir em novos objetos, o melancólico, não. A célebre frase de
Freud nesse texto: “a sombra do objeto caiu sobre o Eu”[1], explica
bem essa diferença nas duas estruturas psíquicas.
Não podemos esquecer que nossa pulsão de vida anda lado a lado com nossa
pulsão de morte, e a linha que as separa é muito tênue. Em algum momento, sua
assistente lhe fala que nunca o tinha visto falar de sua mãe desde que esta
morreu, o cineasta aos poucos começa a fazer seu trabalho de luto e isso se
refletirá em seu corpo e sua alma. Salvador busca ajuda médica para os seus
sintomas físicos e com seu desejo ressurgindo pode criar novamente. As dores
provavelmente continuarão, sejam elas físicas ou emocionais, mas, como ele
lidará com elas, certamente será diferente a partir dessas elaborações e de seu
novo projeto criativo. Fiquei refletindo sobre a capacidade de sublimação do
artista através de sua arte e sua criação e me deu uma “inveja branca”, sem dúvida
o artista “fala” de tudo o que sente por meio dos objetos que produzem; neles
ele pode elaborar e simbolizar suas dores, amores e alegrias e nós, simples
mortais, precisamos encontrar nossos recursos internos e tentar produzir algo
para isso, pelo menos temos o privilégio de contemplar suas representações e nos identificarmos com
elas. Como os filmes, as peças teatrais a que assisto e as obras de arte que
contemplo me ajudam e simbolizar minhas dores e a me reinventar.
O filme de Almodóvar mostra um cineasta maduro, que viveu intensamente a
vida, e que agora terá que lidar com suas perdas. Almodóvar afirmou após o lançamento
do filme que “a velhice é um massacre”, penso que Dor e Glória é o primeiro filme que retrata essa fase do diretor, a
constatação de sua idade, da castração que a velhice impõe, mas também da certeza
que nunca deixaremos de desejar independentemente da idade que temos, o desejo
do inconsciente não envelhece, talvez se
transforme um pouco, mas não morre e é ele que nos move e nos possibilita continuar vivendo. Em algum momento, ao relembrar o fracasso de um amor,
Salvador relembra: “O cinema me salvou”, ao final do filme, veremos que a arte
o salvará de novo de sua grande perda, a morte de sua mãe, de seu corpo doente
e de uma vida cheia de perdas e glórias. Pensei de que maneira a psicanálise,
minha profissão, meus alunos, a arte, escrever aqui no meu blog, produzir
filmes para o meu canal de vídeos, enfim, objetos que mobilizam a minha capacidade de criar causam o meu
desejo e me salvam de mim mesma.
E você? Já pensou o que causa o seu desejo e o salva?
[1] 1914/2010.
Luto e Melancolia. In: Sigmund Freud,
Obras completas. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros
textos (1914-1916) (P. C. Souza, Trad. ). São Paulo: Companhia das Letras.
Olá Mara, Parabéns pelo texto! Gostei bastante. Não assisti o filme, ainda, e ler seu texto me motivou a vê-lo o quanto antes. Achei muito interessante seus apontamentos analíticos, trazendo os conceitos da Psicanálise para lhes dar amparo. Me provocou reflexões que me tocaram bastante. Vou ler outros textos seus. Tudo de bom!
ResponderExcluirFico muito feliz e grata pelo seu comentário!
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