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domingo, 4 de agosto de 2019

Dor e Glória – Pedro Almodóvar 2019




Dor e Glória, as perdas e glórias de um sujeito

“Este é o meu projeto mais pessoal”, falou Almodóvar quando filmava seu mais recente filme Dor e Glória; depois de assisti-lo, percebemos o quanto essa afirmação é verdadeira. A película nos mostra tom e movimentos completamente diferentes dos outros filmes de Almodóvar: se em vários filmes vimos um sarcasmo, a comédia e até o caricato, neste, a melancolia nos acompanha do início até o fim do filme.
Interessante que ao assistir ao filme, lembrei-me muito do texto de Freud “Luto e Melancolia”, de 1914; nesse texto Freud faz uma analogia entre o luto e a melancolia e expõe as diferenças entre um e outro, em ambos a perda de desejo, a tristeza e o desinvestimento nos objetos estão presentes. Embora esses dois estados apresentarem semelhanças sintomáticas, no luto, ao seu tempo, o sujeito conseguirá simbolizar sua dor, sua perda e retomar sua vida, ao contrário do melancólico que tem um processo muito mais complexo, por não ter recursos psíquicos suficientes para fazer essa transição. Por que quis apontar essa diferença? Porque ao longo do filme acompanhamos o personagem Salvador Mallo, (representado magnificamente por António Banderas, por cuja atuação ganhou o prêmio de Melhor Ator em Cannes 2019), um diretor de cinema que vive dores físicas intensas no corpo e uma depressão aguda, em meio a uma crise criativa. Salvador também nos transmite uma melancolia perturbadora durante toda a película. Apesar do movimento lento e profundo do filme, ficamos apreendidos, pois, entre as dores e o olhar triste de Salvador, presenciamos também suas lembranças: da infância, de um grande amor na juventude, de sua mãe e da manifestação de seu primeiro desejo sexual, que nos presenteia com uma das cenas mais belas do filme.
Quis citar o texto de Freud porque, nesse filme, podemos ver justamente a diferença entre o neurótico e o melancólico em relação ao luto: se Salvador apresenta inicialmente um perfil sintomático que não é definido, uma vez que não sabemos se ele irá atravessar esses momentos tão sombrios, no final poderemos constatar  através de suas lembranças, do reencontro com Federico e com sua retomada à vida, que ele não é um melancólico. Essa é a grande diferença que Freud nos mostrou – o neurótico consegue com o tempo fazer o luto e voltar a investir em novos objetos, o melancólico, não. A célebre frase de Freud nesse texto: “a sombra do objeto caiu sobre o Eu”[1], explica bem essa diferença nas duas estruturas psíquicas.
Não podemos esquecer que nossa pulsão de vida anda lado a lado com nossa pulsão de morte, e a linha que as separa é muito tênue. Em algum momento, sua assistente lhe fala que nunca o tinha visto falar de sua mãe desde que esta morreu, o cineasta aos poucos começa a fazer seu trabalho de luto e isso se refletirá em seu corpo e sua alma. Salvador busca ajuda médica para os seus sintomas físicos e com seu desejo ressurgindo pode criar novamente. As dores provavelmente continuarão, sejam elas físicas ou emocionais, mas, como ele lidará com elas, certamente será diferente a partir dessas elaborações e de seu novo projeto criativo. Fiquei refletindo sobre a capacidade de sublimação do artista através de sua arte e sua criação e me deu uma “inveja branca”, sem dúvida o artista “fala” de tudo o que sente por meio dos objetos que produzem; neles ele pode elaborar e simbolizar suas dores, amores e alegrias e nós, simples mortais, precisamos encontrar nossos recursos internos e tentar produzir algo para isso, pelo menos temos o privilégio de contemplar suas representações e nos identificarmos com elas. Como os filmes, as peças teatrais a que assisto e as obras de arte que contemplo me ajudam e simbolizar minhas dores e a me reinventar.
O filme de Almodóvar mostra um cineasta maduro, que viveu intensamente a vida, e que agora terá que lidar com suas perdas. Almodóvar afirmou após o lançamento do filme que “a velhice é um massacre”, penso que Dor e Glória é o primeiro filme que retrata essa fase do diretor, a constatação de sua idade, da castração que a velhice impõe, mas também da certeza que nunca deixaremos de desejar independentemente da idade que temos, o desejo do inconsciente não envelhece,  talvez se transforme um pouco, mas não morre e é ele que nos move e nos possibilita continuar vivendo. Em algum momento, ao relembrar o fracasso de um amor, Salvador relembra: “O cinema me salvou”, ao final do filme, veremos que a arte o salvará de novo de sua grande perda, a morte de sua mãe, de seu corpo doente e de uma vida cheia de perdas e glórias. Pensei de que maneira a psicanálise, minha profissão, meus alunos, a arte, escrever aqui no meu blog, produzir filmes para o meu canal de vídeos, enfim, objetos que mobilizam  a minha capacidade de criar causam o meu desejo e me salvam de mim mesma.
E você? Já pensou o que causa o seu desejo e o salva?








[1] 1914/2010. Luto e Melancolia. In: Sigmund Freud, Obras completas. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (P. C. Souza, Trad. ). São Paulo: Companhia das Letras.