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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Uma noite de 12 anos



                                                





Uma noite de 12 anos poderia ser mais um filme dos tantos que já assistimos que trata de tortura e sofrimento durante a ditadura na América Latina, no entanto, devido a sensibilidade do diretor Alvaro Brechner a película apesar do tema duro e altamente dramático nos faz sentir na alma, um misto de emoções que se confundem durante o filme: tristeza e melancolia de forma muito real, mas, sem muitas cenas de tortura física, porém, com muitas cenas de tortura psicológica, esse foi um grande diferencial nesse filme, sentimos muito a dor da alma. Vemos que podemos dilacerar um homem com o isolamento, escuridão, abandono e silêncio. Alvaro também apresenta cuidados técnicos e ritmos muito peculiares ao filme. Primeiro, vamos à parte técnica das filmagens que são espetaculares, as cores sempre cinza e marrom, os planos detalhes das mãos sujas, olhos melancólicos e os closers dos rostos dos atores são perfeitos e dão profundidade as cenas, sendo assim, os poucos momentos que vivemos as lembranças felizes dos presos são verdadeiros presentes imagéticos, pois, os planos são gerais, com muita luz, closers muito bem filmados deles felizes e tudo acompanhado perfeitamente com a trilha sonora, tornando um casamento técnico perfeito entre som e imagem. Apesar do filme iniciar com uma música anempática, pois a música era alegre e animada acompanhando a prisão dos três, talvez a intenção fosse essa mesma, ou seja, mostrar a ironia e satisfação dos militares em uma situação trágica. Já os sons metadiegéticos na representação das alucinações auditivas de Pepe são perfeitos para entendermos como funciona uma psicose. E por fim, a cena, mais para o final do filme, muito triste por sinal, em que a cantora canta a linda música que termina com a palavra: companheiro, é  totalmente empática e de arrepiar...
Agora vamos ao roteiro, o filme se inicia em setembro de 1973 no Uruguai, em que, Mauricio Rosencof (Chino Darín), José Mujica (Antonio de la Torre) e Eleuterio Fernández Huidobro (Alfonso Tort) fazem parte do grupo dos Tupamaros que lutam contra a ditadura militar. Eles são presos em ações distintas e com mais outros nove companheiros, encarcerados e não podem nem sequer falar uns com os outros. Acompanhamos ao longo do filme esses três homens serem tratados pior do que animais, ( modo de falar, para enfatizar a crueldade que eles passavam, porque eu não consigo outro termo de comparação, apesar de que nenhum animal deveria ter um tratamento desumano, é claro) porque eles são presos em prisões sem camas, sem nenhum tipo de claridade e sem privadas, precisam se deslocar com os guardas e com correntes para as privadas coletivas. Os maus tratos são tantos, como dormir com os ratos, passar fome, passar frio, não ter acesso a luz, higiene, que temos a sensação que esses homens se tornarão animais irracionais, ou que sucumbirão se suicidando, que eram os objetivos dos militares, enlouquecê-los ou  os fazerem desistir de viver. Apesar de Mujica enlouquecer, ele não sucumbe e não desiste de viver. É duro ver tanto sofrimento e por anos. Várias vezes me lembrei de outro preso Nelson Mandela um homem de 1,90 de altura que ficou 27 anos preso em uma pequena cela que também foi presidente e ganhou o prêmio Nobel da Paz. Como os presos não podiam falar uns com os outros, eles começam a se comunicar através de toques na parede, cada toque representa uma letra até formar uma palavra e frases. A capacidade do homem de simbolizar é extraordinária e mesmo num quase total impedimento comunicacional, eles “falam”. É tão bonito quando a filha de Eleuterio vai visitá-lo e ele “fala” com os toques para Maurício que não sabe o que falar para a filha, e Maurício sugere, conte uma estória e Eleuterio responde, mas não sei nenhuma, e o amigo conta uma estória com toques  na parede para o amigo repassar à filha. Esses homens tão solitários, abandonados e mal- tratados apesar de tanto sofrimento físico e tortura psicológica nunca deixam sua dignidade e seu lado humano morrerem. Durante os doze anos, eles são transferidos para inúmeras prisões, cada uma pior do que a outra, só a última que parece uma cela, pois as anteriores pareciam as masmorras da Idade Média. O filme nos brinda diversas vezes com cenas antológicas, como a da mãe de Mujica esperando por horas na chuva para tentar vê-lo, ou quando consegue finalmente visitá-lo e percebe que seu filho está descompensado e falando coisas sem nexo, a força com que essa mãe chama Pepe para realidade e o convoca a não desistir é emocionante. Outra cena é a da médica que avalia a psicose de Pepe, tão profunda e verdadeira ela conta rapidamente sua estória para ele, e Mujica fala mais ou menos isso: o que me resta? Deus não faria isso e estou louco. E a médica muito sabiamente fala: faça só o que for possível. E no fundo ela também está falando, não desista.
Em tempos em que estamos vivendo uma eleição no qual, um candidato apoia a tortura, homenageia torturador, assistir a um filme que mostra o que a ditadura militar uruguaia fez com aqueles homens e usando mesmos significantes que são utilizados até hoje: subversivos, comunistas, causa uma espécie de horror e profunda tristeza. Como alguém que tem a mínima ideia do que seja a tortura, pode apoiar, zombar ou incentivar isso para outro ser humano?
Freud nos apontou em um de seus célebres textos, que essa agressividade existente no ser humano é inerente a raça humana, (Mal Estar da Civilização -1930), mas sabemos também, que através do simbólico e da sublimação podemos amenizar essa agressividade e apaziguar a pulsão de morte em vez de projetá-la no outro.  Por que essa busca infindável de se fazer existir o Grande Outro, que imaginariamente se manifesta na figura do líder político, do Pai de todos e do salvador, esse que pode solucionar tudo sozinho?  Ninguém pode solucionar tudo, nem pode controlar o outro e para quê? Todos temos que aprender a lidar com as nossas próprias escolhas e as consequências delas. Quem precisa de pai é criança e não adulto. Nem os presos no filme puderam ser controlados totalmente, pois, a autonomia interna que cada um possuía era maior do que qualquer controle. Quando acabei de assistir ao filme pude entender quem é Pepe Mujica, me deu um orgulho danado de existirem seres como ele no mundo.
Somos seres desamparados, sem garantia de nada e só com uma certeza, todos iremos morrer, aceitar a castração simbólica é aceitar que somos humanos.
O filme mostra que, justamente essa capacidade de simbolizar, de imaginar, de criar alternativas, seja se comunicar com toques na parede, seja apreciar os minutos de ar puro, seja valorizar a luz do sol ou lembrar das pessoas que amamos é que faz valer a pena viver e não desistir como os três do filme.





quarta-feira, 12 de setembro de 2018

O motorista de táxi






Recentemente assisti ao filme O motorista de táxi que é baseado em fatos reais. Em 1980 a cidade de Gwangju é submetida a uma intervenção militar na Coréia. O filme foi representante do Coréia do Sul na tentativa de uma vaga ao melhor filme em língua estrangeira no Oscar 2018. Dirigido por Hun Jang, a película é magnificamente conduzida por esse diretor que leva seu protagonista principal Song Kang-Ho a dar um show de interpretação.
 O filme me convocou a muitas reflexões e me atravessou de forma muito profunda. Parece até coisa do inconsciente, porque eu não sabia nada sobre esse filme, e eis que quando começo a assistir, percebo que se trata de um tema sempre atual para humanidade, os regimes autoritários e suas nefastas consequências para o povo. “Coisa do inconsciente” pois, estamos em um ano eleitoral no Brasil e uma parte da população brasileira defende um candidato que defende um discurso autoritário e de violência. Essa proximidade temporal com as eleições e o tema do filme que aborda uma situação de revolta do povo coreano contra um ditador, me fez estremecer ante a possibilidade da repetição de um gozo mortífero em nosso país.
Retornando ao filme Man-seob (Song Kang Ho) é um motorista de táxi, sem cultura, alienado e totalmente distante da realidade política do seu país, é o que poderíamos nomear de “pobre de direita”. Um homem bom, ingênuo, que não teve acesso à educação, que já foi soldado e atualmente dirigi um táxi e vive com muita dificuldade e sem conseguir pagar suas dívidas. A ignorância de Man-seob  é percebida logo no início do filme, em suas impressões em relação aos estudantes universitários que participam de uma manifestação contra o governo ele fala: “vão estudar, vocês não sabem o que é viver um país ruim, como a Arábia Saudita e dirigir num calor infernal, afinal nosso país não está tão mal assim”, sua fala faz parecer que os estudantes são vagabundos e ingratos.
O taxista acaba caindo em uma situação totalmente sem o seu controle e adversa, devido a necessidade de ganhar um dinheiro que pagasse algumas dívidas. Ele transporta um cliente, sem saber, um jornalista estrangeiro alemão que vem cobrir os atos de revolta em uma cidade coreana próxima de Seul e acaba se expondo aos riscos, a violência e aos ataques do exército à população. Aos poucos o homem ignorante e ingênuo entrará em contato com um real avassalador e cruel da ditadura, da covardia e do genocídio. O filme mostra como civis são mortos sem pudor ou limites e a manipulação da mídia pelos ditadores, que ao relatar os acontecimentos na cidade Gwangju esconde os fatos reais e os números de mortos.
Man-seob vê a crueldade humana e a pulsão de morte no seu estado mais cru e sem filtros, pois a vida do outro é banalizada e não tem o menor valor para o tirânico exército coreano. Ao assistir esse filme, não pude deixar de me entristecer e lembrar do quanto a humanidade é repetitiva e como esse gozo mortífero está sempre ressurgindo, alimentando ó ódio em relação ao outro, incitando a eliminação do diferente, do que diverge e do que representa o que não posso suportar a minha castração. Pensei na angústia de judeus, sérvios, coreanos, argentinos, chilenos e outros tantos povos, que sofreram com a ditadura e nosso povo que, uma parcela da população deseja votar em um candidato que homenageia um torturador, incita o estupro e está sempre incitando ao ódio e a violência. Gente, onde está a memória da humanidade??? Todos sabem da história do Nazismo, da nossa história tão recente, com tantas perdas e sofrimento. Me lembrei de Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), Totem e Tabu ( 1912-1914), O Futuro de uma Ilusão (1927), O Mal-estar na civilização (1930) e O problema econômico do masoquismo (1924), um dos textos mais importantes na minha opinião para se entender a pulsão de morte.
Man-seob, o taxista alienado perde sua ingenuidade, e além disso, não consegue ficar indiferente a tudo que vê, sente e finalmente percebe que o discurso pode ser manipulado de acordo com os interesses e de quem tem o poder e só a verdade pode anular isso. O universitário antes visto por ele como um vagabundo e sem motivo para estar protestando, ganha status de amigo, de igual, de companheiro que luta pelos mesmos ideias: liberdade e vida e para isso não precisa ser universitário, basta ser humano, camponês ou motorista de táxi, essa pulsão de vida também é o único antídoto para a pulsão de morte, pois Freud apontou que ambas eram feitas da mesma matéria.
Ao final do filme, apesar de momentos tristeza e constatação da pulsão de morte e do gozo repetitivo da humanidade, ao ver o desfecho dessa película, me trouxe também a esperança e a confiança na pulsão de vida, que leva muitos a lutarem a se sacrificarem para que outros no futuro possam viver melhor e livres, como o jornalista alemão, Thomas Kretschmann correspondente de guerra, que coloca sua vida em risco em prol de outras vidas,  a fim de mostrar ao mundo a violência do golpe militar, os motoristas de táxi que se uniram para salvar os feridos e do próprio Man-seob que também se arriscou muito, pode se engajar, colaborar e até amadurecer. Apesar do nosso lado humano mórbido e destrutivo, felizmente, sempre existe luta e a vida no final do túnel.



segunda-feira, 30 de abril de 2018

Praça Paris






O novo filme da diretora Lúcia Murat é um misto de drama e suspense que nos deixa angustiados desde os primeiros minutos da trama até o fim. O filme foi um dos vencedores da 19ª edição do Festival do Rio de 2017 [...] Exibido na Mostra Competitiva da Première Brasil, “Praça Paris” arrecadou o prémio de Melhor Direção de Ficção, para Lúcia Murat e o prémio Redentor de Melhor Atriz, atribuído a Grace Passô, categoria para a qual Joana de Verona também foi nomeada.”[1]
 Murat tem o talento de nos levar ao complexo mundo da marginalidade, pobreza e desamparo sem cair no exagero ou na violência gratuita, sim, porque esse filme poderia retratar na tela muita violência, mortes e cenas  esdrúxulas, mas aí que está a sua sapiência como diretora e cineasta, a violência permeia toda a película, mas, nas sutilezas, nas palavras, nos significantes, nos closes-up bem enquadrados das personagens e sobretudo, na atuação maravilhosa da atriz angolana Grace Passô que representa a paciente Glória.
O filme aborda o drama de Glória, uma mulher pobre, negra, residente na favela, que trabalha na universidade -UERJ como ascensorista e vai fazer um tratamento terapêutico com uma psicóloga portuguesa, Camila mestranda que está pesquisando sobre a violência no Rio de Janeiro. Coincidentemente, a terapeuta teve uma avó que viveu no Brasil, e que muitos a acham parecida fisicamente com ela, no fim do filme, tenho dúvidas se era só fisicamente, mas, enfim, podem ser só minhas fantasias.
No decorrer do tratamento Glória vai tecendo sua novela familiar catastrófica à Camila; abandonada pela mãe quando criança, ela fica com o pai e o irmão menor, o pai a estupra e a mantém como sua amante. A terapeuta vai ficando profundamente envolvida não só profissionalmente, como ela afirma várias vezes, mas também pessoalmente. A estória de Glória é muito dura, crua e real, através dela, Camila tem acesso ao submundo das favelas, “as leis” sem lei dos donos do morro e ao desamparo daquela mulher que está a mercê do ódio, da desigualdade social e da supremacia masculina. A diretora expõe muito bem qual é o lugar da mulher, pobre e favelada no mundo dos homens sejam eles pobres ou ricos, ela é sempre explorada e tende a ser objeto do outro. O mais interessante que, apesar da situação profundamente excruciante de Glória, ela em nenhum momento, se faz de vítima, transparece sua fragilidade e sua dor, sem dúvida a paciente teve que construir defesas muito potentes para lidar com toda a violência e as perdas que a vida lhe impôs. Glória é uma mulher muito lúcida em relação a sua estória e aos seus dramas, mas, o contato com Camila a colocará em contato com sua “prisão psíquica”. Ao contrário, Camila a terapeuta, apesar dos conhecimentos teóricos e vai se fragilizando e perdendo o controle no decorrer do filme. As palavras e as angústias de Glória são sentidas por Camila na transferência de uma forma avassaladora. A terapeuta entra em contato também com seu desamparo, está em um país que não é o seu, no qual o perigo está a poucos metros de distância, a violência sai da pesquisa teórica para ser entendida através de sua paciente, de forma empírica, pungente e irredutível.
Murat dá até uma passeada na religião e mostra o empenho de um pastor em ” adestrar suas ovelhas” na favela. Deus é uma das possibilidades de redenção e salvação, nem que seja para aliviar as dores dos mais fracos e submetidos as leis dos homens do tráfico e das armas.
Apesar de todo o muro defensivo de Glória, pois, temos a sensação que parece até que ela está narrando a estória de outra pessoa, tamanha a sua frieza (talvez seja seu recurso falar sob um certo ponto de distanciamento, a fim de preservar sua sanidade mental), a terapia irá causar desejos em Glória e ela tentará sustenta-los. No entanto, devido a escassez de simbólico do meio em que foi submetida e de seu laço com o irmão, ela irá passar ao ato, a única saída vislumbrada por uma mulher que se vê sempre subjugada ao desejo do outro, “ou elimino quem está no meu caminho ou meu desejo será eliminado”. No filme fica bem claro, que essa mulher não pode desejar, nunca pôde, e pelo andar da carruagem, talvez nunca possa, pois, os significantes que a marcaram são indeléveis e serão repetidos onde quer que ela esteja. Apesar da impassibilidade quase irritante de Glória é perceptível pelo seu olhar, pelo seu jeito de falar, que há um esforço hercúleo, para se poder existir, como ser humano e como mulher, na terapia ela mostrará o receio de ser abandonada pela terapeuta, a transferência se estabelece de forma plena e Glória tenta reescrever seu destino, mesmo que na repetição.
Por outro lado, Camila também reescreverá o seu, não necessariamente através de sua dissertação de mestrado. A passagem de sua avó pelo Brasil, também carrega um enigma que Camila tentará de alguma forma elaborar, há algo inominável na estória dessa avó, transmitido pela família, e quem sabe essa narrativa foi transmitida consciente e inconsciente a ela, pois alguém precisaria dar sentido a esta incógnita familiar. No final do filme veremos dois destinos, nenhum deles resolvido, como é a vida de todos nós, sempre em construção.