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sábado, 14 de janeiro de 2017

Eu, Daniel Blake








Adicione um tema real, atual e oportuno; um roteiro coeso e uma direção primorosa, esse é o resultado do novo filme dirigido por Ken Loach, e escrito por Paul Laverty, que ganhou a Palma de Ouro, prêmio como melhor filme no último Festival de Cannes, 2016.
O que leva um filme melancólico, triste e extremamente real ser tão bom? Penso que a capacidade do diretor em transmitir tão bem a realidade de pessoas comuns como nós. Daniel Blake poderia ser cada um de nós, poderia ser um amigo nosso, nosso irmão, nosso parente, ou nosso vizinho, de tão familiar que é a estória dele.
Um homem trabalhador, esforçado, sem qualificação, muito simples, não tem filhos, parentes, esposa e que vive de seu salário. Repentinamente Daniel é acometido de uma doença cardíaca que o impede de trabalhar. Essa é a estória central desse filme genial, que nos envolve do início ao fim, sem melodramas ou clichês, o filme é  um bom exemplo de que para se fazer cinema de qualidade, é preciso ter mais massa cinzenta do que muitos dólares.
Recentemente Loach esteve no Brasil e numa entrevista disse que o Estado vende a ilusão que somos ricos. Eu corrigiria essa afirmação, penso que o Estado vende a ideia que somos amparados pelo nosso trabalho e pelo tempo de vida que investimos nele, afinal, temos “direito” a um auxílio quando necessitamos, já que, pagamos impostos, e trabalhamos anos a fio. É justamente essa falsa ideia de amparo que cai para Daniel durante o filme. Ele é um homem que não é mais jovem, sem saúde, se confronta com uma burocracia asfixiante, uma cobrança de conhecimento digital e um jogo perverso do governo para adiar seus direitos ao auxílio trabalhador, embora sua médica afirme que ele não esteja pronto para voltar ao trabalho, o governo afirma o contrário.
Aos poucos, vamos entrando nesse mundo real, duro e injusto em que vive Daniel e também todos nós vivemos, por isso afirmei acima, Daniel poderia ser qualquer um de nós. O que temos além de um trabalho para sobrevivermos? E quando não somos mais produtivos o que viramos? Um vagabundo, um preguiçoso, um sem teto, um número de inscrição? Daniel irá questionar todos esses significantes, além, do mais importante, a dignidade. A medida em que o sujeito, não tem um lugar econômico e social no mundo, ele perde sua dignidade. Vamos perceber isso em outros personagens do filme, como a amiga, mãe solteira e desempregada que ele apoia.  A dignidade de Kate vai sendo minada aos poucos, devido a questão da sobrevivência dela e de seus filhos. A cena  em que ela recebe a cesta básica, e não consegue se controlar abrindo uma lata de molho e comendo escondido porque estava quase desmaiando de fome ou o furto de absorventes, que não eram doados, é de cortar o coração. Comer, morar, ter higiene, são direitos básicos, sem isso o que o ser humano se torna? Um indigente, um nada ou um simples número como Daniel irá desabafar em sua carta.
O filme é  um grande alerta ao mundo em que vivemos, no qual, devido ao neoliberalismo, que inclusive, se instala a todo vapor em nosso país, não respeita e não se importa com direitos e bem- estar do trabalhador. Não é isso que começamos a ver com as novas leis trabalhistas que o governo ilegítimo de Temer tentar impôr? Doze horas de trabalho, aposentadoria com 50 anos de trabalho, negociações salariais e flexibilidade de carga horária com empregadores. Como alguém irá trabalhar 50 anos para se aposentar? E se o trabalhador for acometido com uma doença grave como Daniel Blake? Como irá sobreviver com uma percentagem mínima de sua aposentadoria? Como depois de velhos, alguns,  doentes, poderão complementar sua renda? No Brasil já vemos Daniels Blake, sentados nos INSS, e recentemente vimos aposentados do Rio de Janeiro, passando dificuldades porque não recebem seus salários. Li outro dia, num post do Facebook, um professor debatendo com um aluno que afirmava que o capitalismo e o socialismo nasceram na mesma época, pós revolução industrial, no entanto, o socialismo segundo o aluno, tinha fracassado. O professor respondeu prontamente: mas se não fosse o socialismo, você trabalharia quinze horas por dia, foi o socialismo que lutou e conquistou para os trabalhadores a redução na jornada de trabalho.

Freud, com sua afirmação ao desamparo estrutural do ser humano, nos alertou para algo que sempre teremos que conviver. O ser humano é frágil, criamos estratégias, fantasias, utopias e ideais para lidar com essa nossa condição, porém, tudo isso cai por terra, quando nos deparamos com o real do corpo e da sobrevivência, não há nada que dê conta da dor física, psíquica, da fome, ou do medo, nenhuma promessa ou ilusão. Precisamos de algo concreto também para amenizar nosso mal-estar físico e mental.
A Revolução Industrial ficou para trás, os trabalhadores não são mais escravos. Será? Ou vivemos o novo modelo de escravidão na contemporaneidade, travestido no neoliberalismo, no qual o salve se quem puder é o ditado marcante para os sujeitos? Nesse mundo cada vez mais capitalista, mais desigual, onde afetos verdadeiros como o de Daniel por sua amiga Kate e seus filhos é algo cada vez mais raro e a banalização da miséria do outro, da violência e da morte se tornam cada vez mais presentes, constatamos, infelizmente, que o filme: Eu, Daniel Blake, longe de ser uma ficção é um alerta para um futuro próximo que abocanhará a todos nós.

Um comentário:

  1. Muito bem colocado seu artigo... filme excelente para percebermos como esse neoliberalismo tenta de todas as formas tirar de nós a essência que é o afeto. Somos sujeitos empreendedores de si e assim é a meta de vida. Vamos perdendo sensibilidade e colocando no lugar desejos materiais.

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